OS PADRES DO DESERTO (séculos III a VI)


Quem eram: homens e mulheres em busca de uma espiritualidade autêntica, do encontro com Deus e conhecimento de si próprios. Fortemente inspirados pelas ideias de martírio e de celibato (Mt 19.3-12; 1 Co 7), mas o movimento não era composto somente por celibatários. Famílias inteiras iam para o deserto, e houve comunidades de homens e mulheres que inspiraram o monasticismo posterior. Os eremitas eram os que vivam mais isolados. Muitos destes padres e madres se tornavam conselheiros espirituais, praticando a caridade e vivendo de pequenos trabalhos manuais. Obra inspirativa: “Vida de Santo Antão”, de Atanásio de Alexandria.

Deserto: lugar de provação, amoldamento de caráter e análise do coração (Dt 8.2). Lugar de experiência com Deus e transformação (Jacó). Dependência de Deus (Elias). Habitação e anúncio profético (João Batista). Luta contra os demônios e busca do Pai (Jesus). Discipulado (Paulo).

Temas da espiritualidade do deserto:

Fuge (foge): em sentido negativo, fugir, deixar a cidade, deixar as futilidades, deixar as paixões, deixar aquilo que afasta de Deus, fugir do que arrasta para o pecado (pecado é hamartia – errar o alvo, o esquecimento do Ser; ao contrário de anamnesis – “fazei anaminesis de mim”). “O mundo é o mundo do esquecimento” (Marcos, o Eremita). O mundo é de morte, pois “jaz no maligno”.  Em sentido positivo, fuga é fugir para Deus e para tudo o que leva a Ele, “fugir para o Alguém, fugir para o Único, fugir unificado para o único Um”. Sair do mundo e o mundo sair de dentro de ti. Sentido psicológico e sociológico: fuga como necessidade vital do ser humano. Fuga da opressão, das relações senhor/escravo (fuga do Egito), das competições hierárquicas, da necessidade de “status”. Fugir para evitar os males psicossomáticos. “Fugir para fora do mundo para Alguém que não é deste mundo, para se perceber que o mundo não tem em si seu sentido e fim” (Arsênio). Fuga implica em movimento, saída. Figuras bíblicas: Abraão, Jacó, os israelitas, Elias, João Batista, Jesus, Paulo. Jesus “fugiu dos céus, dos seus pais, dos seus perseguidores, dos seus aduladores, do mundo e dos seus discípulos”.

Tace (cala-te): “quem domina a língua domina o corpo” (Tiago). “De toda palavra ociosa que o homem disser dela dará conta no dia do juízo”, “a boca fala do que está cheio o coração”, “pela tua palavra será justificado ou condenado”, “o que sai da boca é que torna alguém impuro” (Jesus). “Não é preciso fazer silêncio, pois ele já existe”. “Derrubar uma árvore faz mais barulho do que o crescimento de toda uma floresta”. Calar-se para ouvir a Deus. Calar-se para ser capaz de Deus. Calar porque Deus habita no silêncio. “O Senhor está no seu Santo Templo, cale-se diante d’Ele toda terra” (Hc 2.20). “O julgar pode ser uma inconsciente autoprojeção sobre o outro”. “Quando ninguém lhe parece impuro, então te tornaste puro” (Isaac o Sírio). “A oração surge do silêncio e ao silêncio retorna”. “Tua palavra surge do silêncio e ao silêncio retornará”. “Que teu verbo venha de Deus e retorne para Deus”. Os perigos do muito falar (Anselm Grun): a curiosidade, pois leva a falar demais dos outros. “Um monge nunca deve andar atrás de saber como é este ou aquele; tais perguntas apenas o afastam da oração e levam às calúnias e às conversas vãs; por isso, o melhor é calar-se inteiramente” (Apo 996). O julgamento. “Quando dois irmãos marcavam para conversar, Satanás enviava para aquele local o demônio da maledicência”. A vaidade. “A tagarelice é o trono da vanglória, onde ela senta-se em juízo sobre si mesma e toca o trombone sobre si para o mundo inteiro” (São João Clímaco). A dispersão interior. “Assim como as portas do banho quando ficam sempre abertas rapidamente deixam o calor escoar-se de dentro para fora, assim também quem muito fala, mesmo que fale coisas boas, deixa sua lembrança fugir pelo portão da sua voz” (Diádoco). “Assim como para comer carne é preciso matar, é impossível falar muito, mesmo sobre coisas boas sem tocar as ruins” (S. Bento). “Às vezes, deformamos uma coisa ao falar muito a respeito dela” (H. Nouwen).  Cuidado com o silêncio doentio: “o que torna os mortos tão pesados é o peso das palavras que não souberam dizer”. Pela terapia, “faça sair o veneno da goela da serpente”. “Que teu silêncio não seja irresponsável”.

Quiesce (tranquiliza-te): repouso, descanso, paz, hesychia, shalom. É a paz interior decorrente do casamento da alma com Deus. “Encontra a paz interior e uma multidão será salva ao teu lado” (Serafim). “Um ser de paz comunica sua calma ao mundo inteiro”.  “O verdadeiro homem espiritual não é o homem poderoso, e sim o homem manso”. “Deus busca entre os homens um lugar para o seu repouso”. “Deus não pode repousar em um coração agitado”. “E vindo, ele evangelizou a paz, a vós que estáveis longe e aos que estavam perto” (Ef 2.17). “Ora, o fruto da justiça semeia-se na paz, para os que exercitam a paz” (Tg 3.18). Jesus é o nosso Shabbat, daí, fugimos para estar com Ele e n’Ele. “Todo trabalho deve conduzir ao descanso” (Leloup). “Não trabalhar um dia é tão mandamento quanto não roubar ou adulterar”. “Fiz sossegar a minha alma” (Sl 131.1-2). “Não andeis preocupados por coisa alguma” (Jesus). “Colocai toda sua ansiedade sobre Deus” (Paulo). “A principal obra da hesychia (sossego da alma) é a ameriminia (despreocupação) perfeita de todas as coisas, razoáveis ou não” (João Clímaco). “Quem abre a porta às preocupações razoáveis, abre também às que não são”. A quietude interior é um estado de alma que não sofre nenhuma partilha: ou é total, ou não existe. “Um pequeno cisco atrapalha a visão, uma pequena preocupação faz a alma perder a paz”. Eliminar a preocupação passa pelo contentamento: “deseja tudo o que tens e tens tudo o que desejas”. “Não está em paz quem se compara com os outros”. “Onde há inveja, não há paz”. “Só os humildes vivem em paz”. “Só vive em paz quem se coloca como último de todos e servo dos demais”. Acima de tudo, a paz não é algo que se conquista, mas um dom recebido: Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize (Jo 14.27).

Tratamento (terapeia) das paixões (pathos). A contemplação de si faz com que os padres dos desertos fossem os primeiros psicólogos. “Vou para o deserto para poupar o mundo de mim mesmo”. O ser humano em estado patológico identificado nos logismoi (pensamentos): gastrimargia (gula); philarguia (avareza); porneia (obsessão sexual); orgè (cólera, patologia do irascível); lupè (tristeza, melancolia, sentir-se um lixo); acedia (perda de entusiasmo pela vida espiritual, depressão, impulso de morte, tudo foi inútil, demônio do meio dia); kenodoxia (inflação do ego, vanglória); uperèphania (orgulho). O objetivo é alcançar um estado de “apathea” (ausência de paixões = patologias). Evágrio Pôntico escreveu sobre esse tema no Oriente, e foi trazido ao Ocidente por João Cassiano, em que a “apathea” foi traduzida por “puritas cordis” (pureza de coração).

Ascética: exercício, batalha, luta, renúncia, “usufruir o máximo do mínimo” (palavras, natureza, alimentação, bens, etc). “A verdadeira ascese consiste em saborear” (Anselm Grün). “Portanto, para alcançar a pureza de coração e o amor, é necessário que façamos tudo quanto realizamos por meio das obras ascéticas; pois elas são os instrumentos que podem libertar nosso coração de todas as paixões prejudiciais que nos atrapalham no progresso para a plenitude do amor. Assim, nós praticamos o jejum, as vigílias noturnas, o recolhimento, a meditação nas Sagradas Escrituras, etc., por almejarmos a pureza de coração, que consiste no amor. Assim, o que quer que façamos, devemos fazê-lo a fim de tornar-nos verdadeiramente amantes. É por isso que o amor é normativo em tudo. Atingi-lo é a finalidade de nosso agir...” (João Cassiano) “Se a humanidade não assumir uma postura ascética diante da existência, corre o risco de destruir o mundo” (dimensão ecológica, L. Boff). Mas também há a advertência contra a ascese exagerada, o que não era incomum: “Há alguns que desgastaram seus corpos por meio da penitência. Mas por ter-lhes faltado o discernimento, acabaram se afastando de Deus” (Antão, Apot 8).

Caridade: “ter o mínimo para que possa dividir o máximo com o meu próximo”.

Theosis: deificação; divinização do ser; Cristo vivendo em si (Gl 2.20); divinos por coparticipação (2 Pe 1.4); tornar-se semelhante a Ele (I Jo 3.2), é o objetivo de Deus na vida dos eleitos (Rm 8.29). Salvação é participação na natureza divina. “Deus se fez homem para que o homem pudesse se tornar deus” (Atanásio de Alexandria). Deus realiza estes atos na vida dos fiéis, na concepção oriental, por intermédio principalmente dos sacramentos, que em princípio, não tinham um número limitado, pois em Cristo, toda a realidade é sacramental. Sacramento é o meio natural pelo qual a graça sobrenatural de Deus se revela, ou o meio visível pelo qual a graça invisível se manifesta. Exemplos de sacramentos: a natureza (Sl 19.1); a eucaristia (1 Co 10.16); a Palavra (Ef 5.15); a oração (Tiago 5.14); a congregação (Mt 18.20).

Bibliografia

BARBOSA, Ricardo.  O caminho do coração: ensaios sobre a Trindade e a Espiritualidade Cristã. Curitiba: Ed. Encontro, 1996.
CAVALCANTE, Ronaldo.  Espiritualidade Cristã na História.  São Paulo: Paulinas, 2007.
GRÜN, Anselm. As exigências do silêncio.  Petrópolis: Vozes, 2004.
_____________. Os padres do deserto. Temas e textos.  Petrópolis: Vozes, 2009.
_____________. Tranqüilidade do coração.  São Paulo: Loyola, 2004.
LELOUP, Jean-Yves. Escritos sobre Hesicasmo. Uma tradição contemplativa esquecida.  Petrópolis: Vozes, 2006.
____________. Introdução aos verdadeiros filósofos. Os padres gregos: um continente esquecido
do pensamento ocidental.  Petrópolis: Vozes, 2004.
MERTON, Thomas. Homem algum é uma ilha.  Campinas, SP: Verus, 2003.
____________. O homem novo.  Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.
____________. Na liberdade da solidão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

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