O obscurecimento da Encarnação e da Ressurreição final.

Por mais que a frente neoplatonica e maniquéia tente nega-lo, espiritualizando ou angelizando as coisas, o Cristianismo é uma religião encarnada e inserida no plano material.

Ao fazer-se homem Cristo não assumiu apenas a alma ou espírito do homem, mas assumiu-o como um todo, integralmente, em sua condição material e expressão corporal.

Ao contrário do que afirmavam docetas e gnósticos em conexão com a mentalidade burguesa, Cristo não era um fantasma, um espectro ou uma imagem isenta de corpo.

Por isso deixou-se tocar por aquele que duvidava e disse: Vede, fantasmas não tem carne e ossos como tenho.

Na verdade Jesus foi e sempre será carne de nossa carne, sangue de nosso sangue e osso de nossos ossos, em tudo, absolutamente tudo semelhante a nós, menos no pecado.

Isso quer dizer que ao projetar-se no mundo e ao lançar-se na História jesus Santifica o homem em sua totalidade, divinizando não somente seu intelecto, mas seus sentidos e os orgãos desse sentido. Tudo quanto foi assumido por Deus, foi preservado para a eternidade...

Tal o fundamento de nossa ressurreição. Refiro-me a ressurreição final de todos os homens em seus corpos, dogma do mais preciosos e como tal assim expresso pelo símbolo: ESPERO NA RESSURREIÇÃO DOS MORTOS.

Os gregos a que se dirigiu o apóstolo, já completamente eivados de platonismo, dele mofaram ao ouvir falar na ressurreição dos corpos, porquanto para eles o corpo era uma prisão da qual aspiravam libertar-se como almas vivas.

Para os gregos a única realidade possivel era a da sobrevivência ou imortalidade da alma, separada e livre do corpo...

Jesus porém dissera: EIS QUE VEM A HORA, E LOGO VEM, EM QUE AQUELES QUE JAZEM NOS SEPULCROS MEMORIAIS ESCUTARÃO A VOZ DO FILHO DE DEUS E AQUELES QUE LHA ESCUTAREM REVIVERÃO.

É pois o Cristianismo uma redenção para a alma viva, para que após ter praticado o bem e a virtude, a semelhança de nosso mestre e môdelo, permaneça viva na comunhão com ele; mas é também uma esperança para o corpo que morre e se desfaz assegurando que esse gene tornará a ser replicado e clonado no último dia. Pois todos os códigos estão na mente suprema...

A luz desses dois mistérios: da encarnação de Deus e da ressurreição dos corpos (efeito necessário do primeiro) é que cumpre avaliar o Cristianismo e sua soteriologia.

Embora a imortalidade da alma tenha sido comumente admitida pela Cristandade, desde os tempos apostólicos, a princípio esse espaço de tempo - Estado intermediário - que vai da morte a ressurreição final, distinguia-se perfeitamente da beatitude paradisíaca prometida pelo Senhor aos justos e era concebida nos termos duma sobrevivência precária ou melhor duma sobrevivência que não era plena.

Ora, não sendo plena a sobrevivência, a felicidade não podia ser plena.

Por isso que os Cristãos dos séculos primevos aguardavam a consumação dos tempos e o juizo final como a plena realização das promessas divinas.

Eles bem sabiam que sendo o homem composto de corpo e alma, faltando um desses elementos, sua sobrevivência será incompleta. Era pois o estado intermediário encarado pela igreja como um estado de fragmentação e de incompletude e não como um estado de perfeição absoluta.

Esperava-se a ressurreição final como o momento em que o homem seria refeito, não pela metade, mais como um todo. A redenção iniciada pela encarnação só atingiria seu ponto omega no último dia, quando da ressurreição dos corpos e a reabilitação eterna do elemento material.

Pois a ressurreição significa antes de tudo a elevação da matéria ou do pó ao plano do divino.

A ressurreição é na esteira da encarnação o último estádio da divinização, estádio pelo qual a matéria criada por Deus é eternizada em seu seio...

Desgraçadamente tal concepção não se manteve inalteradamente no decurso dos séculos, por obra e graça do neoplatonismo e do maniqueismo os corolários acima expostos foram sendo cada vez mais esquecidos e postos de lado, para dar lugar a uma reprodução do pensamento grego:
segundo esse pensamento, ora prevalecente, a sobrevivência da alma já é de per si uma existência plena e uma felicidade plena, como se nada mais faltasse...

Deixou-se de falar em salvação do homem, do homem como um todo, das duas partes do homem, para se falar apenas e tão somente, na tão decantada salvação da alma.

Afirmada e reafirmada a salvação da alma, o dogma de ressurreição foi sendo gradativamente minimizado ou abandonado, sem ser contudo oficialmente regeitado. Continuou-se a repetir: ESPERO NA RESSURREIÇÃO DOS MORTOS, mas sem esperar qualquer coisa a mais ou sem se inferir qualquer tipo de deficiência no que tange a sobrevivência da alma antes da ressurreição final.

Declarou-se inclusive que não havia qualquer diferença entre a felicidade experimentada pelos santos, antes e após a ressurreição e com isso se disse nas entrelinhas que o corpo não significa nada e que a felicidade da alma desencarnada representa toda felicidade possivel. As massas passaram a cogitar apenas na sobrevivência imaterial da alma e a encarar essa sobrevivência como uma feliz libertação, sem nutrir qualquer tipo de esperança para o corpo físico e material...

E tal pensamento ainda é bastante comum em nossas igrejas em que pesem os livros de teologia, afinal, são poucos os que leem esse tipo de literatura. Para as massas superficialmente cristianizadas o Cristianismo passou a ser encarado como uma forma religiosa que se ocupa exclusivamente com a salvação da alma no além, tudo dentro dum quadro absolutamente imaterial e incorpóreo... parece até que estamos no Aerópago de Atenas a escarnecer daquele bestalhão do apóstolo Paulo.

Imaginem alguém subir ao púlpito de nossas igrejas para afirmar que antes da ressurreição final a alma não é plenamente feliz ou que sua redenção não é completa?

Conclusão: a dimenssão material, corpórea e concreta do Cristianismo foi como que substituida por um espiritualismo de origem grega, incompativel com os mistérios da encarnação e da ressurreição.

A Cristandade tornou-se já incoerente, já leviana, já hipócrita.

Os gregos eram mais coerentes e sinceros enquanto ridicularizavam os mistérios da encarnação e da ressurreição anunciados pelo abortivo...

Mesmo quando assumiram o Cristianismo fizeram-no sob as formas heréticas do Docetismo e do gnosticismo, que faziam da regeição a esses dois mistérios sua praça forte.

A Cristandade afirma ambos os mistérios, mas apresenta-se como uma forma imaterial e descarnada e insinua formulas de salvação decalcadas em tais preconceitos.

Refiro-me a doutrina Ocidental da salvação somente pela fé com isenção de obras, oficialmente professada pela reforma, mas na prática cada vez mais afirmada e praticada pela igreja romana.

A doutrina monista da salvação é filha desse sistema monista de sobrevivência que só contempla a alma.

Se a salvação é apenas para a alma ou o espírito ou seja para a parte imaterial do homem, posto esta que seu veículo deve ser exclusivamente imaterial, como a fé ou a crença. Uma salvação que brinde apenas parte ou metade do homem - sua parte incorpórea - devera adequar-se a parte visada e ser puramente teorética ou verbal.

Uma salvação que não é para o homem todo, ou melhor, que não é para o corpo ou a matéria não tem porque ser expressa materialmente. A salvação que se volta apenas para o elemento visivel do homem completar-se-a na invisibilidade...


Uma teoria dualista de salvação deve partir necessariamente dum sistema dualista de sobrevivência tendo em vista a ressurreição do corpo como coroamento dessa sobrevivência.

Uma salvação oferecida ao corpo, deverá ultrapassar a fé ou a teoria e expressa-la corporalmente, através de obras. Será um tipo de salvação que imanente ou prática que visa o homem como um todo... esse tipo de salvação não pode prescindir da praxis ou da ação.

A salvação do corpo visivel se dará visivelmente no plano da moral e da ética comunitária e seu fruto será a trasformação de todas as estruturas materiais deste mundo.

Por meio da redenção integral do homem, os mistérios da encarnação e da ressurreição final, adquirem uma força tal, capaz de agir e de operar no mundo Cristificando-o e preparando a parusia. A finalidade do mistério integral é preparar a noiva para o noivo ao invés de vota-la a destruição.

O próprio conceito de fé, alterou-se por completo, como é sabido e iludiu por assim dizer, o reformador alemão M Lutero. No tempo de Lutero a própria igreja romana, afirmava a fé num sentido reducionista, meramente teórico ou intelectual...

Também sob esse aspecto da alteração do significado do conceito de fé no decorrer da Idade média, os créditos cabem primeiramente a maniqueus, gnosticos e neoplatonicos e posteriormente a seus sucessores os místicos. Lutero é legítimo herdeiro destas correntes de salvação já presentes no corpo das igrejas grega e latina...

Efetivamente a escritura santa e bendita nos fala em salvação pela fé, esclarecendo porém que não se trata da fé intelectual do romanismo (não quero dizer que ela seja desprovida de importância mas que deva ser fecundada pela prática) da fé sentimental ou romântica de Lutero e tampouco da fé emocional tão em voga nestes tempos, MAS DA FÉ VIVA.

Mas que vem a ser fé viva?

Se a fé sem obras, ou a fé teorica somente, é morta em si mesma, a fé viva só pode ser a fé acompanhada pelas obras e testificada por elas. A fé vivificada pela caridade e associada a esperança.

Tal A FÉ OPERANTE, QUE OPERA PELA CARIDADE, está é a fé anunciada por Paulo, uma fé que se prática e que se expressa por obras e virtudes, uma fé que comporta necessariamente o cultivo das bemaventuranças, não como algo acessório mas como algo vital.

As bemaventuranças não são algo alheio a fé ou diferente dela, mas a expressão visivel, material, encarnada e integralmente humana da fé.

Essa fé encarnada que se confunde com a submissão ou obediência a Cristo é que salva ou melhor, que santifica e aperfeiçoa os seres humanos e as sociedades que compõe, tornando nosso mundo menos mal, mais humano e mais próximo de Deus.

O esquema teorético que separou a fé das obras é um esquema completamente artificial.

A própria questão da fé ou das obras é um falso dilema ou sofisma...

Supõe-se que alguém possa crer em Jesus e fazer oposto do que ele disse ou desobedece-lo continuamente.

Noutras palavras aceita-se que os seguidores da criatura mais santa que já passou por este mundo possam viver como verdadeiros demônios, praticando o mal e pecando continuamente.

Então se pergunta se tais pessoas se salvam pelo simples fato de terem exercido fé ou professado verbalmente o Cristianismo.

E há quem não titubeie em dizer que sim e em acrescentar que o Cristianismo foi feito justamente para essa gente crapulosa como Hitler, Bush, etc

Chegam inclusive a citar muito seriamente o Evangelho: não são os sãos mas os doentes que precisam de médico.

Eles parecem ter se esquecido que o objetivo do médico é curar o enfermo e não mante-lo enfermo...

Parece que nosso Cristianismo não tem sido lá muito medicinal ou que tem chegado a fabricar enfermos...

A meu ver a pergunta devia ser concebida em outros termos:

CREEM TAIS PESSOAS EM JESUS?

EXERCEM FÉ VIVA NELE?

PARTICIPAM DE SUA VIDA?

Ouso responder que não e logo, que tais pessoas não podem progredir espiritualmente. Se se creem salvas estão iludidas, em termos mágicos.

Pois se conhece a árvore pelo fruto.

As árvores de Cristo, que de fato creem nele, mostram frutos de virtudes expressos por meio de obras santas...

As árvores sem frutos são recebem de sua seiva vivificante e por isso morrem dia após dia, mesmo quando afirmam seu verdor.

Conclusão: o cristão deve dar testemunho integral de seu Mestre, através de todas as potencialidades e caracteres de seu ser e não um meio testemunho, um testemunho teorético e verbal.

Já foi dito que o Cristianismo é muito pregado porque pouco vivido. A luz dos mistérios divinos da encarnação e na ressurreição final somos convocados a mudar essa situação vexatória e a anunciar discretamente, mas de modo vigoroso, ao Verbo da vida: por meio de nossas obras!!!

Só assim poderemos estar nós nele, ele em nós e nossa alegria completa.

Domingos Pardal Braz

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